REFAVELA

Peço licença para fazer essa homenagem. Que disco é esse? Eu quero saber. É o mundo negro que Gilberto cantou para nós.

Raul Seixas disse “eu me formei em filosofia e vim para cá, no Rio de Janeiro, lançar um tratado de metafísica. Eu cheguei e descobri que o Brasil não gostava muito de ler e resolvi ser cantor de Iê Iê Iê realista.”. Estamos em um país onde as universidades são muito recentes. Uma frase famosa diz que só é possível filosofar em alemão. Eu digo que nossa tradição filosófica, na falta de universidades, se expressa de outras maneiras. Os nossos filósofos não escrevem livros, fazem discos.

Dito isso, Gil é um dos filósofos brasileiros mais importantes. Para mim é muito difícil eleger a magnum opus da produção de Gil, quase impossível. Tenho uma relação sentimental com Refazenda que é umbilical. Mas, se fosse preciso escolher uma, escolheria Refavela. E vou sustentar o motivo.

Quem escreve esse texto é um profissional formado em Geografia. Mas preciso confessar, tenho uma perna inteira na Antropologia. Não à toa escrevo mais sobre cultura do que sobre vales e planícies. Escolhi Geografia porque sou ambicioso e queria entender, além da cultura, o que significa um solo ter mais ou menos alumínio em sua composição.

Dica cultural: A HBO lançou recentemente um documentário REFAVELA40 para falar sobre os 40 anos do disco. O documentário tem como base o show feito na Concha Acústica do TCA. Onde eu, obviamente, estava. Está disponível na HBO GO para quem quiser, recomendo.

Refavela é um tratado antropológico. As universidades brasileiras deveriam entregar um kit aos seus calouros: O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro e o Disco Refavela, de Gil. Com um bilhete escrito ESTUDE. É uma análise complexa e muito certeira do que é o Brasil.

O Antropólogo Hermano Vianna (link para o blog dele) disse sobre o disco: é “um dos grandes manifestos de arte moderna no Brasil. Talvez uma atualização do manifesto antropofágico dos anos 20. […] Além dele ser um diagnóstico do que estava acontecendo no Brasil naquele instante, de uma grande transformação que pouca gente percebia na cultura brasileira como um todo. Ele é uma profecia que se auto realiza. Mais do que isso. Uma intervenção muito séria, consciente. É olhar para o que as pessoas não estavam olhando.”

Como não poderia deixar de ser, é um disco de matriz africana. Ora, o que é o Brasil senão fruto de um enorme processo de sequestro, escravização e tortura? Entender o Brasil é entender quem foram essas pessoas que foram forçadas a vir para cá. É entender África. E para entender a relação Brasil – África é preciso entender Bahia – Salvador. A cidade que já foi a mais importante das américas (uma espécie do que Nova York é hoje). O maior centro de comércio de pessoas do novo mundo. O povo que construiu essa cidade, construiu, de algum modo, esse país chamado Brasil.

O disco nasce de uma viagem que Gil fez para Lagos, na Nigéria, onde participou do FESTAC (1977), um festival de arte negra que reuniu nomes como Stevie Wonder e Fela Kuti. Ao voltar da viagem, ele reconhece no Brasil a África que está em nós e descreve com seu jeito sempre poético e bonito que me lembra quando Lazaro Ramos perguntou a ele “você não desanima não, Gil?” e ele responde de bate pronto “Eu não. não vim aqui no mundo pra desanimar. Eu vim aqui para animar”. Gil captou que esse povo, para superar o trauma de sua formação, precisa de mais do que textos que o expliquem, precisa de ânimo.

É isso. Refavela é isso. É identidade como disse Paulinho Camafeu ao se referir à música Que bloco é esse? “Quando me perguntam o que eu sou, eu digo: Eu sou isso aqui.”  É um disco negro para todas as cores, como o próprio Gil afirmou. Para todas as cores porque esse país só será civilizado quando pedirmos desculpa aos negros e os tratarmos como merecem. No fundo Gil é uma entidade que nos permite uma conexão com a ancestralidade. De uma maneira lúdica e bonita para que possamos entender e acertar as contas com nosso passado. “Tataravô, bisavô, avô, pai Xangô. Aganju. Viva Egum, babá Alapalá.”

Uma das músicas se chama Aqui e Agora e começa dizendo “O melhor lugar do mundo é aqui e agora. Aqui onde indefinido. Agora que é quase quando”. Hermano disse “É muito interessante como Gil conecta todos essas coisas da negritude, da África com um pensamento milenar chinês. Coisa que só é possível, acho, a partir de um olhar brasileiro.”. Refavela é brasileiro pelo sotaque, mas é de língua internacional.

Viva Gilberto Gil. Viva Paulinho Camafeu. Viva os pretos da Bahia. Viva Djalma Correa. Viva Rubão Sabino. Viva Refavela. Ajayô.

Esse texto faz parte de um projeto sobre arte nordestina, acesse o texto CORES VIVAS para entender melhor.