ESOTÉRICO

“Ah! Caicó arcaico. Em meu peito CatoLaico, tudo é descrença e fé”

Escrevo este texto e os próximos porque sempre me incomodei com a pretensa superioridade de alguns ateus, que se supõem mais inteligentes e julgam os teístas como “tolos que acreditam numa fábula”. Acreditar ou não na transcendência da experiência humana é uma questão de afeto e não de inteligência. Tenho como referência de vida grandes pessoas, ateias e teístas.

Eu e Deus. Deus e Eu. Um encontro no mundo. Como boa parte dos brasileiros, sou um sujeito de formação cristã católica. Tudo que escreverei aqui tentará ser laico, mas será, inevitavelmente, marcado pela influência que tive (linguagem, ritos e mitos) dessa expressão religiosa. Eu sempre fui muito inquieto e questionador, nunca me contentei com pouco ou respostas vagas. Logo que soube de um filósofo alemão que dedicou boa parte de sua obra para criticar esse modo de vida cristão e o caracterizava como niilista, eu tive que ler a sua produção. Se tem alguém dizendo que esse modo de vida é “errado”, tenho que entender. Sempre existe a chance de eu estar errado.

O filosofo disse “Deus está morto”. Quase uma manchete. Antes de filosofia ser popular (se é que é), Nietzsche soube ser pop. Essa frase causa arrepios em alguns religiosos que se negam a raciocinar. A minha leitura dela é bastante diferente. Nietzsche quis dizer que as pessoas matam Deus quando prescindem dele. Elas não esperam que Ele lhe explique as estrelas, constroem telescópios; não oram mais a Deus para que as suas dores passem, apenas tomam um analgésico. Nietzsche jamais reivindicou para si o “mérito” da morte de Deus. Muito pelo contrário, era um crítico daquela sociedade que ele acusava de ter matado Deus.

Nietzsche é um dos grandes filósofos do comportamento humano e ainda aparecerá aqui para provocar e ser provocado. Outro filosofo que, séculos antes, pensou sobre Deus e o seu significado foi René Descartes. Descartes sempre me intrigou pois chegou à conclusão de que Deus existe a partir de um pensamento racional. Parece um contrassenso, uma vez que, geralmente, opomos o pensamento racional ao religioso. Minhas leituras me levam a entender que são diferentes, não opostos.

René começa O discurso do Método dizendo que o bom senso é a coisa mais bem partilhada entre os homens e que, portanto, todos podem distinguir o verdadeiro do falso. Então, por que uns supostamente distinguem e outros não? Ele responde que o que falta é a aplicação de um método. Nas suas palavras, “[…] a diversidade de nossas opiniões não se deve a uns serem mais racionais que os outros, mas apenas a que conduzimos nossos pensamentos por vias diversas e não consideramos as mesmas coisas”. [1]

Ele realiza um experimento mental, no qual assume que tudo pode ser falso e usará o método chegar a certezas seguras. A primeira certeza é a de que ele mesmo existe. “Penso, logo existo” A segunda ideia que ele examina é se existe ou não um Ser perfeito. Não sendo ele, Descartes, perfeito, ele entende que não poderia ter criado esse tal Ser perfeito. Presume, portanto, que o Ser perfeito existe a despeito dele. Logo, existe.

Para exemplificar ele compara Deus a um triângulo ou uma esfera “Ao passo que, voltando a examinar a ideia que eu tinha de um Ser perfeito, eu descobria que a existência nele estava compreendida, da mesma forma que está compreendida na de um triângulo que seus três ângulos sejam iguais a dois retos, ou na de uma esfera, que todas as suas partes estejam igualmente distantes de seu centro…”

Você pode discordar, racionalidade não é sinônimo de verdade, como fez parecer a sociedade iluminista (verdade ou mentira é tema para outro texto). Fato é que a construção do pensamento cartesiano é absolutamente racional, construído em cima de premissas e conclusões. Desse ponto de vista, Deus existe assim como existe um triângulo. O triangulo perfeito é uma figura geométrica que não é encontrada na natureza, é fruto da abstração humana. Hoje, ninguém dirá que triângulos não existem. Inclusive, eles operam milagres, os engenheiros que me digam.

Deus, criação humana ou não, existe e imprime sua realidade no mundo material e imaterial. Se não for uma criação humana, Ele em algum momento colocou todas essas ideias em nossas cabeças. Se for, já é muito maior que a humanidade e se impõe como uma questão que independe do que ache um ou outro indivíduo.

Porém, pela própria construção do raciocínio, você pode julgar que não se trata de um ou outro Deus captado por preceitos e formas religiosas. Deus, nesse caso, é uma ideia filosófica. A ideia de perfeição, da soma absoluta de todas as partes do universo. É um importante instrumento filosófico. Sem a ideia de perfeição não há como fazer filosofia, é como construir uma casa sem esquadro.

Nisso Nietzsche estava certo também, a sociedade havia matado Deus. Mas para não haver um vácuo existencial, colocou outros no lugar: Deus ciência, Deus dinheiro, Deus felicidade, Deus corpo fitness. Cada um constrói a sua própria ideia de perfeição, e faz dela seu Deus, procurando ser sempre a sua imagem e semelhança.

É isso que quero dizer. Deus existe simplesmente porque cada um faz de algo seu Deus. O meu é CatoLaico, como o verso de Chico César aponta. É em parte católico, em parte laico. Incompreensível, por certo, como disse Gil “Se eu sou algo incompreensível, meu deus é mais.”


[1] DESCARTES, René. O discurso do método. Porto Alegre: L&pm, 2010. 128 p. Tradução de Paulo Neves.

CORES VIVAS


Há várias maneiras de interpretar e narrar o mundo. Há aquelas pessoas que, parvamente, acham que ciência e religião são opostas, por exemplo. As oposições elas não existem em si mesmas. As coisas são diferentes e estão em lugares diferentes, encarar essa diferença como oposição é apenas um ponto de vista. Não sei se fui claro, vou tentar ser mais simples.

Estando uma coisa (aqui) ——————————————————- e outra (acolá).

Aparentemente elas estão opostas, concorda? Uma em um canto e outra em outro. Mas não são assim. As coisas estão:

(aqui)           (aqui)            (aqui)                                                 (aqui)                 (aqui)                                                 (aqui)                                       (aqui)                                           (aqui)                 .

No mundo essas coisas estão espalhadas nas mais diferentes direções (materialmente e conceitualmente), e não somente em 2D, em todas direções e profundidades. E são diferentes entre si e ponto final. Oposições são interpretações possíveis, mas não verdades absolutas. Só é possível estabelecer oposições se fizermos um recorte da realidade. E a realidade não é recorte, é totalidade.

Isso só para dizer que ciência, religião e arte não são opostas, são diferentes maneiras de ver o mundo. E, aqui, eu me atrevo a dizer que vê o mundo melhor quem é capaz de olhar por todas essas lentes, cada uma a seu momento e questão.

Munidos de nossas lentes para ver o mundo, vamos ao que interessa. Cores Vivas. O que é Nordeste? A ciência responde: é uma região político-administrativa brasileira mapeada pelo IBGE em 1970. A arte diz que é uma parte do mundo onde as cores estão vivas.

Para quem não sabe, eu tenho um projeto, procrastinado pela quarentena, de uma disciplina sobre Geografia do Nordeste onde estudamos através da lente da arte. Para desaguar minha ansiedade e compartilhar com vocês eu resolvi produzir textos com algumas ideias que estavam na minha cabeça.

A principio serão seis textos, contando com esse, sobre temas relacionados aos estados nordestinos. Inspirado no Ceará, escreverei sobre Belchior. Paraíba, sobre Augusto dos Anjos. Bahia, sobre o álbum musical Refavela. Alagoas, sobre Djavan. E por fim, Pernambuco, sobre o Rei Luiz (não o francês. O de Exu. Filho de dona Ana Batista de Jesus Gonzaga e Seu Januário).

Outros textos do projeto:

CEARÁ – TUDO OUTRA VEZ

ALAGOAS – VESÚVIO

BAHIA – REFAVELA

PARAÍBA – ESTADO DE POESIA

PERNAMBUCO – REI LUIZ

Ouçam Cores Vivas – Gilberto Gil

A arte é a Bíblia Ecumênica.

Para defender meu argumento, começarei com uma construção lógica. O nosso modo de vida (ocidental) é baseado e reproduzido a partir da palavra escrita. Tudo que é necessário para a vida, nós escrevemos no papel. Nós escrevemos nos livros de física que não se deve colocar o dedo na tomada. Nós escrevemos nos livros de geografia que o sol nasce no Leste. Deixamos registrado para as próximas gerações. Numa redução generalista, todos os livros são espécies de manuais, cada um no seu assunto. A bíblia, é um desses livros. Mais especificamente, um manual da vida. – Concorde você ou não com ela, essa não é a questão. – Nela consta a experiência de seres humanos séculos antes de nós que registraram seus dilemas materiais e morais. Esses seres humanos pretendiam passar uma mensagem do tipo: viva assim que será melhor, não faça aquilo pois pode ser doloroso, etc.

A lógica é: Livros são manuais. A bíblia é um livro. Logo, a bíblia é um manual. Um manual da vida.

A metáfora começa agora. A arte é uma bíblia. Mas não qualquer bíblia. Sem estabelecer níveis de importância (isso é subjetivo, e cada um segue o manual que quiser). É uma bíblia secular.  – Diz-se da pessoa que não se enquadra a uma ordem religiosa. – É a bíblia ecumênica. – Relativo ao ecumenismo, à tendência, à união de todas as igrejas numa só, numa igreja universal. –  Ou seja, a bíblia de e para todas as religiões. Não atoa as figuras religiosas mais famosas (com exceção dos líderes) são aquelas que fazem algum tipo de arte: literatura, música, etc.

A arte funciona como um manual. Só que um manual mergulhado nas figuras de linguagem. Um manual não óbvio. Onde a estética assume um papel tão fundamental quanto a ética. Mas que tipo de manual? Serve para que? Ora, assim como a bíblia, para ensinar a viver. A arte nos ensina a sofrer. Provavelmente, uma das coisas mais importantes para viver, além de respirar e beber água, seja saber sofrer, dado que esse é um elemento inevitável.

E como aprendemos? Um dos elementos fundamentais da aprendizagem é a experimentação controlada. Ou seja, para aprender a dirigir, nós somos colocados para dirigir em um ambiente controlado, onde os possíveis danos podem ser mitigados. Para aprender a trabalhar, realizamos estágios que é o mesmo que trabalhar, só que com menos responsabilidades. Aprender é simplesmente fazer, fazendo de conta.

Aqui entra meu ponto de vista. A arte é um eterno fazer, fazendo de conta. Uma música sobre dor de amor, se ouvida com os afetos aflorados, nos faz viver parte da dor sem que estejamos de fato sofrendo. Quando submetido ao sofrimento, é suposto que o indivíduo esteja mais preparado emocionalmente. Uma charge sobre a incapacidade política de governantes nos ensina sobre o elemento cômico em questão. Sendo assim mais simples lidar com o fato quando ele se manifesta na realidade.

Portanto, a Arte, toda ela, é a bíblia de todas as religiões. O compilado de produção humana que nos faz viver de maneira mais leve sobre essa rocha flutuando no espaço que chamamos de planeta. E, diferente de Goebbels, eu não faço distinção. Qualquer arte, seja ela bem executava tecnicamente ou não. Seja ela brasileira, ou não. Seja ela feita por gente que come ou que não come.

A arte ensina para quem quer aprender. Um dos melhores exemplos, dada a nossa conjuntura, são os filmes sobre pandemias que foram produzidos e que nós não fomos capazes de aprender que aquele cenário era realmente possível. Não fomos capazes de nos prepararmos. Enfim, você quer aprender a viver? Ouça música, dance, pegue um pedaço de papel e pinte um cajueiro.