Doce e Salgado

“Água, Água, Água, Água, Água, Água” Olhe para uma ladeira e me diga se ela sobe ou desce. Não existe ladeira subindo ou descendo. Subir ou descer é uma questão relativa. Depende de onde você vem e para onde vai. Subir ou descer são apenas formas de encarar o movimento no espaço. Formas duais, simplificações lógicas racionalizadas de um mundo que nem sempre é lógico e racional. Assim como Luz, Escuridão, Conhecer, Ignorar, Explicar, Confundir, Corpo, Alma, Doce e Salgado. Essas formas têm lá suas utilidades, funcionam como ferramentas epistemológicas na construção de conhecimento, antes de entender o complexo é necessário entender o simples. Antes de entender as cores e sua diversidade é necessário entender o preto e o branco.

Entretanto não dá para ficar apenas no preto e no branco, pois isso é insuficiente para explicar o mundo. O mundo contém matizes de preto e branco, contém outras cores. Costuma-se dizer que os rios são compostos de “água doce”, mas de onde vem os sais do mar, se não dos rios que “lavam” a terra? Um rio, como eu, como o mundo é muito mais complexo que isso. Somos doce e salgado ao mesmo tempo. “No ponto futuro, o doce e o sal vão se misturar.”

Vide Vida Marvada

“Cumpade meu que envelheceu cantando, diz que ruminando dá pra ser feliz.”

Com Boldrin, aprendi Brasil profundo. Com Gal, aprendi existencialismo. Com os dois, aprendi a viver. “Vou mastigando o mundo e ruminando, e assim vou tocando. Essa vida marvada. É que a viola fala alto no meu peito humano. E toda moda (música de Gal) é um remédio pro meu desengano.”

¹ Este comentário escrevei no dia 9 de novembro de 2022, por ocasião do falecimento desses dois grandes brasileiros.

BOB MARLEY

“Sayin’ give thanks and praise to the Lord and I will feel all right” 

Quem me conhece sabe que eu considero alguns compositores/poetas verdadeiros filósofos populares capazes de traduzir ideias e discussões complexas em letras e ritmos. Fazendo da arte o que ela é de fato, uma linguagem de compreensão e expressão do mundo. Belchior, um autêntico nietzschiano. Raul Seixas, o melhor estilo punk. Gilberto Gil, meu existencialista preferido. Eu, como um discípulo de Gilberto Gil e sua filosofia de vida, sou, consequentemente, um discípulo de seus mestres Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga e Bob Marley.

Bob Marley, entretanto, não foi um simples filósofo. Foi um profeta enviado por Jah para espalhar sua mensagem de amor e concórdia.

“As it was in the beginning (one love). So shall it be in the end (one heart)”

Salva a Humanidade

Mas o que salva a humanidade
É que não há quem cure a curiosidade
Mas o que salva a humanidade
É que não há quem cure a curiosidade
A curi, a curi…
A curiosidade
Quem inventou, inventou
A humanidade
O bura, bura… buraco da fechadura
É o bura, bura
Buraco da curió
Zidade, a curi, a curi, a curiosidade
Que inventou, inventou
A humanidade
E o bura, bura…
Buraco da fechadura
é o bura, bura…
Buraco do curió
O homem fez o fogo (FU, FU, FU)
Fu Furiosidade
O vento assopra a vela (FU FU FU)
Fu Furiosidade
A fada fez a fábula
A bruxa cai de bunda cá
Eva comeu da maça
O furiosidade
Tudo que nunca foi achado
Ficara tambem conhecido se procurado
Com curiosidadeMas o que salva a humanidade
É que não há quem cure a curiosidade
Mas o que salva a humanidade
É que não há quem cure a curiosidade
A curi, a curi…
A curiosidade
Quem inventou, inventou
A humanidade
O bura, bura…
Buraco da fechadura
É o bura, bura
Buraco da curió
Zidade, a curi, a curi, a curiosidade
Que inventou, inventou
A humanidade
E o bura, bura…
Buraco da fechadura
é o bura, bura…
Buraco do curió
O homem fez o fogo (FU, FU, FU)
Fu Furiosidade
O vento assopra a vela (FU FU FU)
Fu Furiosidade
A fada fez a fábula
A bruxa cai de bunda cá
Eva comeu da maça
O furiosidade
Tudo que nunca foi achado
Ficara tambem conhecido se procurado
Com curiosidade
(Curiosidade)

Canção de Elifas Andreato e Tom Zé

ESOTÉRICO

“Ah! Caicó arcaico. Em meu peito CatoLaico, tudo é descrença e fé”

Escrevo este texto e os próximos porque sempre me incomodei com a pretensa superioridade de alguns ateus, que se supõem mais inteligentes e julgam os teístas como “tolos que acreditam numa fábula”. Acreditar ou não na transcendência da experiência humana é uma questão de afeto e não de inteligência. Tenho como referência de vida grandes pessoas, ateias e teístas.

Eu e Deus. Deus e Eu. Um encontro no mundo. Como boa parte dos brasileiros, sou um sujeito de formação cristã católica. Tudo que escreverei aqui tentará ser laico, mas será, inevitavelmente, marcado pela influência que tive (linguagem, ritos e mitos) dessa expressão religiosa. Eu sempre fui muito inquieto e questionador, nunca me contentei com pouco ou respostas vagas. Logo que soube de um filósofo alemão que dedicou boa parte de sua obra para criticar esse modo de vida cristão e o caracterizava como niilista, eu tive que ler a sua produção. Se tem alguém dizendo que esse modo de vida é “errado”, tenho que entender. Sempre existe a chance de eu estar errado.

O filosofo disse “Deus está morto”. Quase uma manchete. Antes de filosofia ser popular (se é que é), Nietzsche soube ser pop. Essa frase causa arrepios em alguns religiosos que se negam a raciocinar. A minha leitura dela é bastante diferente. Nietzsche quis dizer que as pessoas matam Deus quando prescindem dele. Elas não esperam que Ele lhe explique as estrelas, constroem telescópios; não oram mais a Deus para que as suas dores passem, apenas tomam um analgésico. Nietzsche jamais reivindicou para si o “mérito” da morte de Deus. Muito pelo contrário, era um crítico daquela sociedade que ele acusava de ter matado Deus.

Nietzsche é um dos grandes filósofos do comportamento humano e ainda aparecerá aqui para provocar e ser provocado. Outro filosofo que, séculos antes, pensou sobre Deus e o seu significado foi René Descartes. Descartes sempre me intrigou pois chegou à conclusão de que Deus existe a partir de um pensamento racional. Parece um contrassenso, uma vez que, geralmente, opomos o pensamento racional ao religioso. Minhas leituras me levam a entender que são diferentes, não opostos.

René começa O discurso do Método dizendo que o bom senso é a coisa mais bem partilhada entre os homens e que, portanto, todos podem distinguir o verdadeiro do falso. Então, por que uns supostamente distinguem e outros não? Ele responde que o que falta é a aplicação de um método. Nas suas palavras, “[…] a diversidade de nossas opiniões não se deve a uns serem mais racionais que os outros, mas apenas a que conduzimos nossos pensamentos por vias diversas e não consideramos as mesmas coisas”. [1]

Ele realiza um experimento mental, no qual assume que tudo pode ser falso e usará o método chegar a certezas seguras. A primeira certeza é a de que ele mesmo existe. “Penso, logo existo” A segunda ideia que ele examina é se existe ou não um Ser perfeito. Não sendo ele, Descartes, perfeito, ele entende que não poderia ter criado esse tal Ser perfeito. Presume, portanto, que o Ser perfeito existe a despeito dele. Logo, existe.

Para exemplificar ele compara Deus a um triângulo ou uma esfera “Ao passo que, voltando a examinar a ideia que eu tinha de um Ser perfeito, eu descobria que a existência nele estava compreendida, da mesma forma que está compreendida na de um triângulo que seus três ângulos sejam iguais a dois retos, ou na de uma esfera, que todas as suas partes estejam igualmente distantes de seu centro…”

Você pode discordar, racionalidade não é sinônimo de verdade, como fez parecer a sociedade iluminista (verdade ou mentira é tema para outro texto). Fato é que a construção do pensamento cartesiano é absolutamente racional, construído em cima de premissas e conclusões. Desse ponto de vista, Deus existe assim como existe um triângulo. O triangulo perfeito é uma figura geométrica que não é encontrada na natureza, é fruto da abstração humana. Hoje, ninguém dirá que triângulos não existem. Inclusive, eles operam milagres, os engenheiros que me digam.

Deus, criação humana ou não, existe e imprime sua realidade no mundo material e imaterial. Se não for uma criação humana, Ele em algum momento colocou todas essas ideias em nossas cabeças. Se for, já é muito maior que a humanidade e se impõe como uma questão que independe do que ache um ou outro indivíduo.

Porém, pela própria construção do raciocínio, você pode julgar que não se trata de um ou outro Deus captado por preceitos e formas religiosas. Deus, nesse caso, é uma ideia filosófica. A ideia de perfeição, da soma absoluta de todas as partes do universo. É um importante instrumento filosófico. Sem a ideia de perfeição não há como fazer filosofia, é como construir uma casa sem esquadro.

Nisso Nietzsche estava certo também, a sociedade havia matado Deus. Mas para não haver um vácuo existencial, colocou outros no lugar: Deus ciência, Deus dinheiro, Deus felicidade, Deus corpo fitness. Cada um constrói a sua própria ideia de perfeição, e faz dela seu Deus, procurando ser sempre a sua imagem e semelhança.

É isso que quero dizer. Deus existe simplesmente porque cada um faz de algo seu Deus. O meu é CatoLaico, como o verso de Chico César aponta. É em parte católico, em parte laico. Incompreensível, por certo, como disse Gil “Se eu sou algo incompreensível, meu deus é mais.”


[1] DESCARTES, René. O discurso do método. Porto Alegre: L&pm, 2010. 128 p. Tradução de Paulo Neves.

OGROBIZ

Reis do Agronegócio

Ó donos do agrobiz, ó reis do agronegócio,
Ó produtores de alimento com veneno,
Vocês que aumentam todo ano sua posse,
E que poluem cada palmo de terreno,
E que possuem cada qual um latifúndio,
E que destratam e destroem o ambiente,
De cada mente de vocês olhei no fundo
E vi o quanto cada um, no fundo, mente.

Vocês desterram povaréus ao léu que erram,
E não empregam tanta gente como pregam.
Vocês não matam nem a fome que há na Terra,
Nem alimentam tanto a gente como alegam.
É o pequeno produtor que nos provê e os
Seus deputados não protegem, como dizem:
Outra mentira de vocês, Pinóquios véios.
Vocês já viram como tá o seu nariz, hem?

Vocês me dizem que o Brasil não desenvolve
Sem o agrebiz feroz, desenvolvimentista.
Mas até hoje na verdade nunca houve
Um desenvolvimento tão destrutivista.
É o que diz aquele que vocês não ouvem,
O cientista, essa voz, a da ciência.
Tampouco a voz da consciência os comove.
Vocês só ouvem algo por conveniência.

Para vocês, que emitem montes de dióxido,
Para vocês, que têm um gênio neurastênico,
Pobre tem mais é que comer com agrotóxico,
Povo tem mais é que comer, se tem transgênico.
É o que acha, é o que disse um certo dia
Miss Motosserrainha do Desmatamento.
Já o que acho é que vocês é que deviam
Diariamente só comer seu “alimento”.

Vocês se elegem e legislam, feito cínicos,
Em causa própria ou de empresa coligada:
O frigo, a múlti de transgene e agentes químicos,
Que bancam cada deputado da bancada.
Té comunista cai no lobby antiecológico
Do ruralista cujo clã é um grande clube.
Inclui até quem é racista e homofóbico.
Vocês abafam mas tá tudo no YouTube.

Vocês que enxotam o que luta por justiça;
Vocês que oprimem quem produz e que preserva;
Vocês que pilham, assediam e cobiçam
A terra indígena, o quilombo e a reserva;
Vocês que podam e que fodem e que ferram
Quem represente pela frente uma barreira,
Seja o posseiro, o seringueiro ou o sem-terra,
O extrativista, o ambientalista ou a freira;

Vocês que criam, matam cruelmente bois,
Cujas carcaças formam um enorme lixo;
Vocês que exterminam peixes, caracóis,
Sapos e pássaros e abelhas do seu nicho;
E que rebaixam planta, bicho e outros entes,
E acham pobre, preto e índio “tudo” chucro:
Por que dispensam tal desprezo a um vivente?
Por que só prezam e só pensam no seu lucro?

Eu vejo a liberdade dada aos que se põem
Além da lei, na lista do trabalho escravo,
E a anistia concedida aos que destroem
O verde, a vida, sem morrer com um centavo.
Com dor eu vejo cenas de horror tão fortes,
Tal como eu vejo com amor a fonte linda –
E além do monte o pôr-do-sol porque por sorte
Vocês não destruíram o horizonte… Ainda.

Seu avião derrama a chuva de veneno
Na plantação e causa a náusea violenta
E a intoxicação “ne” adultos e pequenos –
Na mãe que contamina o filho que amamenta.
Provoca aborto e suicídio o inseticida,
Mas na mansão o fato não sensibiliza.
Vocês já não ´tão nem aí co´aquelas vidas.
Vejam como é que o Ogrobiz desumaniza…:

Desmata Minas, a Amazônia, Mato Grosso…;
Infecta solo, rio, ar, lençol freático;
Consome, mais do que qualquer outro negócio,
Um quatrilhão de litros d´água, o que é dramático.
Por tanto mal, do qual vocês não se redimem;
Por tal excesso que só leva à escassez –
Por essa seca, essa crise, esse crime,
Não há maiores responsáveis que vocês.

Eu vejo o campo de vocês ficar infértil,
Num tempo um tanto longe ainda, mas não muito;
E eu vejo a terra de vocês restar estéril,
Num tempo cada vez mais perto, e lhes pergunto:
O que será que os seus filhos acharão de
Vocês diante de um legado tão nefasto,
Vocês que fazem das fazendas hoje um grande
Deserto verde só de soja, cana ou pasto?

Pelos milhares que ontem foram e amanhã ser-
Ão mortos pelo grão-negócio de vocês;
Pelos milhares dessas vítimas de câncer,
De fome e sede, e fogo e bala, e de AVCs;
Saibam vocês, que ganham com um negócio desse
Muitos milhões, enquanto perdem sua alma,
Que eu me alegraria se afinal morresse
Esse sistema que nos causa tanto trauma.

Poema de Carlos Rennó

REI LUIZ

Esse texto é último do projeto, não por acaso. Por dois motivos principais. Primeiro por causa de Exu/Pernambuco/Recife. Numa hipótese de o Nordeste se separar do Brasil e se tornar um país independente – coisa que não defendo, afinal o que seria do resto do país? Gosto muito dos meus amigos mineiros e gaúchos (até dos paulistas, olha só) que tenho – a capital deveria ser Recife. Salvador é maior e mais rica, etc. Porém, Recife é mais representativa do que é nordeste. Está mais entranhada na região. Salvador é meio ilhada em relação às outras capitais. Pernambuco é um estado mais conectado com o dia a dia nordestino.

O outro motivo é Juazeiro. Em uma das disciplinas da graduação, um professor passou, como processo avaliativo, a tarefa de criar um material pedagógico, algo que pudesse ser usado em sala de aula para ensinar geografia. Ele deixou o tema e o formato livre, mas pediu que fossemos criativos e que a ideia fosse operacionalizável. Pensando com meus botões, eu resolvi que produziria uma espécie de módulo sobre o domínio morfoclimático dos sertões secos (caatinga) e que procuraria provocar os alunos para a noção de que o ser humano não interage com a natureza de uma maneira estéril, ele é natureza.

Enfim, para aplicar esse conteúdo elaborei algumas estratégias. Uma das últimas era usar a música Juazeiro de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. A música é o relato de uma pessoa sofrendo dor de amor e que conversa com a árvore do Juazeiro. O Juazeiro não é simplesmente um pedaço de madeira fincado no chão (como enxergam aqueles que acham que a natureza é recurso), para o sujeito retratado é o confidente mais fiel, aquele que ouve seu lamento.

“Juazeiro, Juazeiro. Me arresponda por favor. Juazeiro, velho amigo, onde anda meu amor? Ai, Juazeiro Ela nunca mais voltou. Diz, Juazeiro. Onde anda o meu amor. […] Juazeiro, seje franco Ela tem um novo amor? Se não tem porque tu choras, solidário à minha dor?”

A partir dessa música e dessa reflexão estudaríamos o que é o Juazeiro, quais relações esses dois seres vivos estabelecem nessas condições de seca, a espacialização da presença do Juazeiro, etc. Todos gostaram da ideia e alguns colegas até comentaram que iam aplicar em suas salas, fiquei feliz. Ainda guardo com carinho um exemplar que imprimi. O Juazeiro de Gonzaga me fez abrir os olhos para a possibilidade de trabalhar questões aparentemente frias de maneira quente. Tudo isso me trouxe aqui, como “um riacho, um caminho”.

Os seres humanos, quando as condições materiais de existência são escassas, tendem a estabelecer relações cada vez mais íntimas com aquilo que está ao seu redor. A cadela da família de Fabiano não era uma cadela qualquer, era Baleia. O rio São Francisco não é apenas um corpo d’água é o velho Chico, cheio de contos, músicas, cordéis e danças feitos em sua homenagem.

Essa homenagem Gonzaga soube fazer. Falou das condições de vida na seca, que são difíceis, de maneira bela. Tom Zé disse que a “bossa nova inventou o Brasil”. É verdade. A Bossa Nova possibilitou uma exportação da cultura brasileira que não tinha sido vista antes. Uma espécie de conclusão do processo que José de Alencar pretendia com O Guarani. Uma produção cultural que, em qualquer lugar do mundo, fosse reconhecida como brasileira.

Nesse sentido, Gonzaga inventou o Nordeste. Levou para todos os lares brasileiros um pedaço do Nordeste. Quem aqui nunca ouviu A vida de viajante ou Xote das Meninas, se você nunca ouviu, para de ler agora e vai ouvir. Quem nunca ouviu Asa Branca?

Esse pedaço do Brasil tem uma voz, a voz de Luiz. O cara que influenciou de Gilberto Gil a Raul Seixas, artistas muito diferentes. Raul, como um grande intérprete cultural, igualou Luiz a Elvis Presley. Disse “Elvis e Luiz Gonzaga, para mim, são duas almas gêmeas”.  Raul quando cantava Blue Moon enfiava Asa Branca no meio e vice-versa.

O forró e suas diversas ramificações são a trilha sonora de qualquer São João nordestino. Independentemente do que você ouvir (de todas as possibilidades de forró) Gonzaga será sempre uma referência presente. Eu não gosto de ser saudosista. Mesmo as vezes sendo inevitável, procuro não ser. Nem sempre o que foi produzido antes é melhor. Mesmo assim, o que fica como referência para várias gerações futuras nós costumamos chamar de clássico. Os clássicos, devem sempre ser retomados para entendermos o que nos trouxe aqui. Platão jamais deixará de ser lido. Não tem como entender filosofia sem levar em conta o que disse Platão.

Gonzaga, para mim, é clássico. Para entender Gil, eu ouço Gonzaga. Para entender Belchior, eu ouço Gonzaga. Para entender Zé Ramalho, eu ouço Gonzaga. Além de tudo isso, ele é a lembrança do São João no meu interior, rir com meus primos de piadas inventadas na hora, terreiro varrido, noite fria de junho e fogueira ao som de Olha pro céu. Uma memória inconfundível do varal de lâmpadas feito por gambiarras, sobre minha cabeça, como uma constelação de estrelas próximas. Todo esse projeto, e um pouco mais eu “aprendi com o rei”.

Esse texto faz parte de um projeto sobre arte nordestina, acesse o texto CORES VIVAS para entender melhor.

ESTADO DE POESIA

Nesse exato momento tenho comigo o livro O que é Arte de Jorge Coli. Desgastado pelo tempo, com uma fita adesiva lateral mantendo sua estrutura. As palavras impressas deixam claro que não há resposta curta ou fechada para a questão que o título coloca. Levando em conta o que os especialistas dizem, eu me permito inferir e pensar abertamente sobre o assunto. Estou dizendo isso porque me pego pensando na minha audácia em escrever sobre coisas tão significativas não sendo um profissional da arte. De qualquer maneira, isso não pretende ser um artigo científico. São apenas meus pensamentos registrados e compartilhados. Sinta-se à vontade para pensar comigo, contrariamente ou não.

A vida no planeta Terra é baseada em Carbono, correto? A arte, eu arrisco dizer, é baseada em poesia. Existem diversas maneiras de se manifestar artisticamente: cinema, teatro, esculturas, dança, até as piadas podem ser interpretadas como expressões artísticas. Entretanto, há sempre uma substância microscópica nessas manifestações. Na molécula de um movimento corporal há uma ligação química chamada poesia. Qualquer um que precise adjetivar uma dessas expressões que seja muito bonita, não dificilmente dirá: é poético. Todos os artistas são poetas de línguas diferentes.

Nesse projeto tinha que ter um poeta. Gil e Belchior são poetas, claro. Mas avaliei que seria educativo um poeta no sentido “clássico”. Poderia ser Castro Alves, poderia ser Gregório de Matos, poderia ser Patativa do Assaré, mas não poderia deixar ser Paraíba. Paraíba é um estado de poesia. Figura de linguagem de Chico César.

Aqui vale um parêntese – Estado de Poesia é a música título de um dos discos de Chico César. O disco foi feito quando ele passou alguns anos morando na Paraíba depois de tantos em São Paulo. O disco é tão bom que eu fui duas vezes para esse show, uma no TCA e outra na Caixa Cultural. A música em questão é uma declaração de amor belíssima, que antes já tinha sido gravada por Maria Bethânia (o que já cartaz suficiente para qualquer música). “Para viver em estado de poesia, me entranharia nestes sertões de você. Para deixar a vida que eu vivia, de cigania antes de te conhecer. De enganos livres que eu tinha porque queria, por não saber que mais dia menos dia, eu todo me encantaria pelo todo do teu ser. […] É belo vês o amor sem anestesia. Dói de bom, arde de doce. Queima, acalma, mata, cria. Chega tem vez que a pessoa que enamora, se pega e chora do que ontem mesmo ria. Chega tem hora que ri de dentro pra fora. Não fica nem vai embora. É o estado de poesia”

E Paraíba, além de Chico é Augusto. Eu não tenho nada para dizer sobre Augusto dos Anjos de técnico, se é parnasiano, ou o que mais. Quando era adolescente e o li, não foi isso que me tocou. Foi a tragédia da vida nua e crua. No texto sobre REFAVELA disse que sempre quis saber sobre a química do solo. O que faz um Ipê ser tão bonito? Do que ele se alimenta? Eu queria ser bonito como um Ipê. Talvez essa curiosidade tenha sido provocada por Augusto quando me apresentou a Psicologia de um vencido e fatalidade da química a qual seremos reduzidos, mais cedo ou mais tarde.

“Eu, filho do carbono e do amoníaco. Monstro de escuridão e rutilância, sofro, desde a epigênese da infância, a influência má dos signos do zodíaco. Profundissimamente hipocondríaco, este ambiente me causa repugnância… Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia, que se escapa da boca de um cardíaco. Já o verme — este operário das ruínas — que o sangue podre das carnificinas come, e à vida em geral declara guerra. Anda a espreitar meus olhos para roê-los. E há-de deixar-me apenas os cabelos, na frialdade inorgânica da terra!”

Os parnasianos vão me crucificar. Mudei a métrica do poema. Pouco importa. Augusto importa. Psicologia de um vencido é uma maneira muito inteligente de falar da finitude da condição humana. Evidenciando o quanto a vida é uma aventura de dissabor, mas sem se colocar subserviente, como ser um servo a qualquer ideal que possa ser maior do que a própria frustração inevitável do viver.

Tá aí. Outra reflexão auto terapêutica. Aos que ainda não entenderam porque eu não segui na Antropologia e vim para a Geografia, Augusto é parte da resposta. Para mim, os grupos humanos são fascinantes, como diz Caetano “Gente espelho da vida, doce mistério”. A ciência ainda demorará séculos para entender esse animal bípede que chamamos de humano. Mais fascinante ainda é o sistema ecológico no qual estamos inseridos, de maneira inseparável, que chamamos de Planeta Terra.

Em O Lamento das Coisas, Augusto diz “Triste, a escutar, pancada por pancada, a sucessividade dos segundos. Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos, o choro da energia abandonada! É a dor da Força desaproveitada, – O cantochão dos dínamos profundos. Que, podendo mover milhões de mundos, jazem ainda na estática do Nada! É o soluço da forma ainda imprecisa… Da transcendência que não se realiza… Da luz que não chegou a ser lampejo… E é em suma, o subconsciente aí formidando, aa natureza que parou, chorando. No rudimentaríssimo do Desejo!” Obviamente isso pode ser interpretado em diversas escalas, inclusive a do indivíduo. Entretanto, a minha leitura, impõe uma interpretação de que o dínamo que nos move (coração) é alimentado pelo dínamo que move o planeta. No fim, sou feito de poeira de estrela, assim como o cajueiro no terreno vizinho que cresce e aparece desinibido na minha janela.

Esse texto faz parte de um projeto sobre arte nordestina, acesse o texto CORES VIVAS para entender melhor.

REFAVELA

Peço licença para fazer essa homenagem. Que disco é esse? Eu quero saber. É o mundo negro que Gilberto cantou para nós.

Raul Seixas disse “eu me formei em filosofia e vim para cá, no Rio de Janeiro, lançar um tratado de metafísica. Eu cheguei e descobri que o Brasil não gostava muito de ler e resolvi ser cantor de Iê Iê Iê realista.”. Estamos em um país onde as universidades são muito recentes. Uma frase famosa diz que só é possível filosofar em alemão. Eu digo que nossa tradição filosófica, na falta de universidades, se expressa de outras maneiras. Os nossos filósofos não escrevem livros, fazem discos.

Dito isso, Gil é um dos filósofos brasileiros mais importantes. Para mim é muito difícil eleger a magnum opus da produção de Gil, quase impossível. Tenho uma relação sentimental com Refazenda que é umbilical. Mas, se fosse preciso escolher uma, escolheria Refavela. E vou sustentar o motivo.

Quem escreve esse texto é um profissional formado em Geografia. Mas preciso confessar, tenho uma perna inteira na Antropologia. Não à toa escrevo mais sobre cultura do que sobre vales e planícies. Escolhi Geografia porque sou ambicioso e queria entender, além da cultura, o que significa um solo ter mais ou menos alumínio em sua composição.

Dica cultural: A HBO lançou recentemente um documentário REFAVELA40 para falar sobre os 40 anos do disco. O documentário tem como base o show feito na Concha Acústica do TCA. Onde eu, obviamente, estava. Está disponível na HBO GO para quem quiser, recomendo.

Refavela é um tratado antropológico. As universidades brasileiras deveriam entregar um kit aos seus calouros: O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro e o Disco Refavela, de Gil. Com um bilhete escrito ESTUDE. É uma análise complexa e muito certeira do que é o Brasil.

O Antropólogo Hermano Vianna (link para o blog dele) disse sobre o disco: é “um dos grandes manifestos de arte moderna no Brasil. Talvez uma atualização do manifesto antropofágico dos anos 20. […] Além dele ser um diagnóstico do que estava acontecendo no Brasil naquele instante, de uma grande transformação que pouca gente percebia na cultura brasileira como um todo. Ele é uma profecia que se auto realiza. Mais do que isso. Uma intervenção muito séria, consciente. É olhar para o que as pessoas não estavam olhando.”

Como não poderia deixar de ser, é um disco de matriz africana. Ora, o que é o Brasil senão fruto de um enorme processo de sequestro, escravização e tortura? Entender o Brasil é entender quem foram essas pessoas que foram forçadas a vir para cá. É entender África. E para entender a relação Brasil – África é preciso entender Bahia – Salvador. A cidade que já foi a mais importante das américas (uma espécie do que Nova York é hoje). O maior centro de comércio de pessoas do novo mundo. O povo que construiu essa cidade, construiu, de algum modo, esse país chamado Brasil.

O disco nasce de uma viagem que Gil fez para Lagos, na Nigéria, onde participou do FESTAC (1977), um festival de arte negra que reuniu nomes como Stevie Wonder e Fela Kuti. Ao voltar da viagem, ele reconhece no Brasil a África que está em nós e descreve com seu jeito sempre poético e bonito que me lembra quando Lazaro Ramos perguntou a ele “você não desanima não, Gil?” e ele responde de bate pronto “Eu não. não vim aqui no mundo pra desanimar. Eu vim aqui para animar”. Gil captou que esse povo, para superar o trauma de sua formação, precisa de mais do que textos que o expliquem, precisa de ânimo.

É isso. Refavela é isso. É identidade como disse Paulinho Camafeu ao se referir à música Que bloco é esse? “Quando me perguntam o que eu sou, eu digo: Eu sou isso aqui.”  É um disco negro para todas as cores, como o próprio Gil afirmou. Para todas as cores porque esse país só será civilizado quando pedirmos desculpa aos negros e os tratarmos como merecem. No fundo Gil é uma entidade que nos permite uma conexão com a ancestralidade. De uma maneira lúdica e bonita para que possamos entender e acertar as contas com nosso passado. “Tataravô, bisavô, avô, pai Xangô. Aganju. Viva Egum, babá Alapalá.”

Uma das músicas se chama Aqui e Agora e começa dizendo “O melhor lugar do mundo é aqui e agora. Aqui onde indefinido. Agora que é quase quando”. Hermano disse “É muito interessante como Gil conecta todos essas coisas da negritude, da África com um pensamento milenar chinês. Coisa que só é possível, acho, a partir de um olhar brasileiro.”. Refavela é brasileiro pelo sotaque, mas é de língua internacional.

Viva Gilberto Gil. Viva Paulinho Camafeu. Viva os pretos da Bahia. Viva Djalma Correa. Viva Rubão Sabino. Viva Refavela. Ajayô.

Esse texto faz parte de um projeto sobre arte nordestina, acesse o texto CORES VIVAS para entender melhor.

VESÚVIO

Existem os inimigos da técnica, os que acreditam que o voluntarismo dará conta de tudo. Existem os que se enganam achando que a técnica, em si mesma, é competência. Nem tanto, nem tão pouco.

A coragem de tomar atitudes é parte fundamental do “sucesso”. Porque mesmo aquelas pessoas que possuem técnica e sabem fazer o que fazem, nada são se não possuem a coragem de se expor. Ninguém é algo sozinho. Um bom jornalista só é um bom jornalista se muitas pessoas o reconhecem assim. Muitas vezes nem é um bom jornalista, mas o reconhecimento social é suficiente para torná-lo bom.

A internet prova isso. Geralmente, os mais famosos são pessoas que nada tem de interessante para dizer. O seu “mérito” é ter tido a coragem de dizer. Aqueles que têm coisas interessantes para dizer, não dizem. Por isso é tão importante pessoas como Atila Iamarino, que possuem conhecimento técnico e coragem para dizer. Se perguntarmos a qualquer brasileiro um nome de um médico competente há uma grande chance de ouvirmos Oswaldo Cruz ou Drauzio Varella. Aliar as duas coisas é fundamental. Então, se você tem algo de interessante para dizer, diga! Não deixe que os idiotas digam primeiro que você.

O mérito de Djavan é justamente esse e posso provar. Se fizermos uma votação dos quatro grandes nomes da música popular brasileira (obviamente, cada um vai ter uma lista) tenho em mim que os nomes mais lembrados serão: Caetano Veloso, Chico Buarque, Djavan e Gilberto Gil. Desses quatro, Djavan é o único que não se posiciona politicamente de maneira contundente. Ora, estamos em um país em que a política é o grande assunto do dia, todos os dias. Nem mesmo uma pandemia pôde tirar a política da página 1. Se Djavan não fala sobre política, fala sobre o que? Eu respondo.  Sobre o ridículo.

Djavan, de algum modo, me lembra Fernando Pessoa. Aquele que é tido como o maior poeta da língua portuguesa. Pessoa escreveu “Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas.”. É isso que Djavan canta. O ridículo. A parte da vida que não entra nos jornais, ou se entra não entra como deveria. Afinal reflexão racional alguma capta o que o amor representa. Se fosse possível, bastava ler O banquete de Platão e o assunto estava encerrado. Pablo jamais venderia um CD.

Ou seja, Djavan canta o problema político que perdura desde a Grécia antiga, passando pelo Império Romano, feudos e as diversas revoluções chinesas. Aquele que perdurará quando não houver mais Brasil.

Para falar de amor é necessário ser corajoso. Sobretudo sendo um homem negro numa sociedade racista e machista. Quantas teorias já foram criadas se Djavan é ou não gay? Eu mesmo já ouvi que ele teria namorado Caetano Veloso – se um dia foi verdade, bom para os dois. A quem isso importa além dele mesmo?

Mais do que ser corajoso é necessário ser competente. Afinal, o clichê está disponível para quem quiser reproduzi-lo. Basta pegar uma música qualquer do século passado e repetir o enredo com os personagens diferentes. Boa parte dos filmes românticos tem um enredo muito parecido.

Poucos são aqueles que conseguem retratar o amor de outras perspectivas. Não óbvias. Que nos arrastam para dilemas que nunca vivemos e talvez nem viveremos, mas mesmo assim somos arrastados. Ser romântico, sem ser óbvio, requer muito mais competência do que parece. E isso ele faz. De maneira tão monumental que me lembra o Vesúvio.

Esse texto faz parte de um projeto sobre arte nordestina, acesse o texto CORES VIVAS para entender melhor.

TUDO OUTRA VEZ

Esse texto terá Belchior como o Sol, em torno do qual gravitará. Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenele Fernandes “um dos maiores nomes da música popular” como ele mesmo se denominou em uma clara brincadeira com a extensão do seu nome completo é, na minha leitura, um artista mais do que necessário. Quem me conhece, se for perguntado qual meu artista preferido, responderá Gilberto Passos Gil Moreira e acertará. Não é muito difícil. Mas eu preciso confessar publicamente uma coisa: escrever esse texto me colocou por alguns minutos sem ter certeza dessa posição. Eu, que me politizei ouvindo Tom zé e relativizei a política ouvindo Gil, ouvindo Belchior aprendi a sofrer.

Naturalmente, antes de escrever, fui ouvir Belchior e relembrar o que ele significa para mim. Me recordar quais quadros ele pintou na parede da minha memória (para ficar numa metáfora do próprio). Anotar e escrever foi, literalmente, uma experiência de autoterapia. Revisitar meus dilemas. Revisitar alguns porquês. O meu inconsciente veio a tona e me dei conta: Belchior tem influencias Nietzschianas! Ficou tudo tão claro que eu me perguntei como não tinha me conscientizado antes. Depois de me dar conta disso dei um Google e vi que outras pessoas também chegaram a essa conclusão. Preferi não ler os textos para não contaminar meu raciocínio que vai se construir unicamente a partir da minha perspectiva.

Se Belchior leu Nietzsche eu não sei dizer. Provavelmente sim. Se leu, fez bom uso do oxigênio que gastou enquanto vivo. Se não, só torna a sua genialidade mais extraordinária.

Nietzsche representou para mim algo muito importante. É engraçado, agora, como é óbvio. Nietzsche foi e sempre será o filosofo da minha maturação. Belchior também, apenas com outra linguagem. A obviedade só aumenta, pois o filosofo alemão demonstrou justamente o que eu defendo, sempre que posso: a arte é uma linguagem muito melhor que a razão, pois ela não tem pretensão de verdade. Descobri Nietzsche um pouco antes que Belchior, devia ter uns 14 anos. Eles me possibilitaram uma compreensão melhor de mim mesmo no mundo. (Por isso esse texto é auto terapêutico).

Outra confissão é: eu tenho a mania de ouvir discografias. Acredito, de verdade, que a obra de um artista é tão importante quanto a produção de um cientista e deve ser levada a sério (não no sentido de ser sério, mas de dar importância). Belchior foi o primeiro artista que eu devorei a obra do início ao fim. Ainda me lembro a primeira vez que ouvi Belchior. Apenas um Rapaz Latino Americano era a música, eu estava no estágio que fazia na Secretaria de Planejamento do Governo do Estado da Bahia. Tinha 16 anos. Minha barba estava nascendo. Lá se vão quase 10 anos.

Foi como um furacão na minha vida. A minha colega de trabalho pode ter achado que eu usei alguma substância psicoativa (como café ou qualquer outra coisa). Eu fiquei alterado com aquela música. Eu me recordo do momento como se fosse ontem. Devo ter passado os próximos 03 anos, a contar daquela data, ouvindo Belchior mais do que minha própria voz (não é força de expressão).

Além de tudo, Belchior teve a coragem de ironizar Caetano Veloso. Não se trata de colocar Caetano na cruz, apenas evidenciar que ele pode ser criticado, coisa que os artistas brasileiros não vão fazer.

Belchior viveu a vida como Nietzsche. Amando o incerto. Vivendo o eterno. Belchior amava sua vida não APESAR da dor, mas INCLUINDO a dor.

Nietzsche em A Gaia Ciência aforismo 341 diz: “E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: ‘Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes”. A experiência consistia em assumir a possibilidade de que sua vida é tudo o que você tem. Assumindo a possibilidade do eterno retorno. Você aguentaria viver sua vida em loop infinito, incluindo os momentos dolorosos? Você entraria em desespero ou ficaria tranquilo?

Belchior viveu para provar que conseguiria, viveu o eterno retorno, o amor fati. A música de Belchior onde essa relação é mais óbvia, até pelo título é: Tudo Outra Vez. Ele relata vários acontecimentos tristes e felizes e no fim diz: “agora eu quero tudo, tudo outra vez.” Ressaltando seu aspecto de aprendiz da vida.

Belchior teve uma vida que o mainstream considera muito sofrida, mas foi a que ele escolheu viver. O dinheiro que ele ganhou, ele gastou. Chegou a ser acusado de calote. Não ficou fazendo cálculo de futuro. Basta pesquisar um pouco para ver vários exemplos. Apenas viveu, como se sua vida fosse a coisa mais importante (coisa que poucos de nós tem coragem de fazer).

Em Coração Selvagem ele diz “E esse jeito de deixar sempre de lado a certeza. E arriscar tudo de novo, com paixão. Andar caminho errado pela simples alegria de ser.”. Ele não apenas poetizou Nietzsche, mas praticou. Sempre que tinha a certeza a sua frente, ele abandonava. Carreira de sucesso? Para que? Tocar no Fantástico? Que diferença faz? “Meu bem, o mundo inteiro está naquela estrada ali em frente. Tome um refrigerante, coma um cachorro-quente. Sim, já é outra viagem e o meu coração selvagem. Tem essa pressa de viver”. Poderia passar um mês fazendo essas comparações. Quem sabe rende outro texto.

Quero terminar dizendo que um mamífero como Belchior, que viveu sua animalidade como nenhum outro, tinha lugar. “eu sou um menino do interior, de sobral, e o primeiro grande desejo que eu tive na vida foi ver o mar. Isso me levou sempre pra ser, intuitivamente, um cidadão de Fortaleza.”. Belchior é como arco-íris. Projeção do sol na chuva.

REFERÊNCIAS:

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência (tradução de Antônio Carlos Braga). São Paulo: Editora Escala.

BELCHIOR. Tudo Outra Vez. Warner Bros. Records. 1999.

BELCHIOR. Coração Selvagem. WEA Discos. 1977.

Esse texto faz parte de um projeto sobre arte nordestina, acesse o texto CORES VIVAS para entender melhor.

CORES VIVAS


Há várias maneiras de interpretar e narrar o mundo. Há aquelas pessoas que, parvamente, acham que ciência e religião são opostas, por exemplo. As oposições elas não existem em si mesmas. As coisas são diferentes e estão em lugares diferentes, encarar essa diferença como oposição é apenas um ponto de vista. Não sei se fui claro, vou tentar ser mais simples.

Estando uma coisa (aqui) ——————————————————- e outra (acolá).

Aparentemente elas estão opostas, concorda? Uma em um canto e outra em outro. Mas não são assim. As coisas estão:

(aqui)           (aqui)            (aqui)                                                 (aqui)                 (aqui)                                                 (aqui)                                       (aqui)                                           (aqui)                 .

No mundo essas coisas estão espalhadas nas mais diferentes direções (materialmente e conceitualmente), e não somente em 2D, em todas direções e profundidades. E são diferentes entre si e ponto final. Oposições são interpretações possíveis, mas não verdades absolutas. Só é possível estabelecer oposições se fizermos um recorte da realidade. E a realidade não é recorte, é totalidade.

Isso só para dizer que ciência, religião e arte não são opostas, são diferentes maneiras de ver o mundo. E, aqui, eu me atrevo a dizer que vê o mundo melhor quem é capaz de olhar por todas essas lentes, cada uma a seu momento e questão.

Munidos de nossas lentes para ver o mundo, vamos ao que interessa. Cores Vivas. O que é Nordeste? A ciência responde: é uma região político-administrativa brasileira mapeada pelo IBGE em 1970. A arte diz que é uma parte do mundo onde as cores estão vivas.

Para quem não sabe, eu tenho um projeto, procrastinado pela quarentena, de uma disciplina sobre Geografia do Nordeste onde estudamos através da lente da arte. Para desaguar minha ansiedade e compartilhar com vocês eu resolvi produzir textos com algumas ideias que estavam na minha cabeça.

A principio serão seis textos, contando com esse, sobre temas relacionados aos estados nordestinos. Inspirado no Ceará, escreverei sobre Belchior. Paraíba, sobre Augusto dos Anjos. Bahia, sobre o álbum musical Refavela. Alagoas, sobre Djavan. E por fim, Pernambuco, sobre o Rei Luiz (não o francês. O de Exu. Filho de dona Ana Batista de Jesus Gonzaga e Seu Januário).

Outros textos do projeto:

CEARÁ – TUDO OUTRA VEZ

ALAGOAS – VESÚVIO

BAHIA – REFAVELA

PARAÍBA – ESTADO DE POESIA

PERNAMBUCO – REI LUIZ

Ouçam Cores Vivas – Gilberto Gil